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Como ficam os partos domiciliares com as resoluções do CREMERJ em vigor?

Versão sintética: ficam praticamente na mesma, para a maioria das mulheres que optam por parir em casa hoje, no Rio de Janeiro. Ficam um pouco diferentes para a maioria das equipes que atendem partos domiciliares hoje, no Rio de Janeiro.

O que de fato não ficam: ilegais ou proibidos ou mesmo inviáveis ou mais arriscados.

O que diz a resolução 265/2012 do CREMERJ sobre os partos domiciliares? (a íntegra você pode conferir aqui)

“Art. 1º É vedada a participação do médico nas chamadas ações domiciliares relacionadas ao parto e assistência perinatal. Art. 2º É vedado ao médico participar de equipes de suporte e sobreaviso, previamente acordadas, a partos domiciliares. Art. 3º Ficam excetuadas as situações de urgência/emergência obstétrica, devendo ser feita a notificação compulsória ao CREMERJ, circunstanciando o evento. Art. 4º É compulsória a notificação ao CREMERJ, pelos Diretores Técnicos e plantonistas de unidades hospitalares, do atendimento a complicações em pacientes submetidas a partos domiciliares e seus conceptos ou oriundas das chamadas “Casas de Parto”. Art. 5º O descumprimento desta Resolução é considerado infração ética passível de competente processo disciplinar. Art. 6º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.”

Assim, fica vedado aos médicos assistirem partos domiciliares (o que de fato já não vinha ocorrendo no Rio de Janeiro há bastante tempo, pois esta “recomendação” já existia), fica vedado também que fiquem de backup previamente acordado (ou seja, que conheçam as mulheres no pré-natal, tenham ciência de seus planos de parto domiciliar e se disponham a atendê-las no hospital em caso de transferência - quer seja emergencial, quer seja a pedido) e também passa a ser compulsória a notificação, pelo hospital, ao CREMERJ, de qualquer caso de transferência ou intercorrência associada ao parto domiciliar.

Com isto, claro, perdem as mulheres que desejam um atendimento por médico conhecido e “humanizado”, com plano de parto discutido, em caso de transferência. Na verdade, perdem as que PODEM DISPOR disto. Porque, de fato, isto não afeta as mulheres que não têm plano de saúde, aquelas que não podiam ou não queriam pagar por uma equipe particular caso fossem transferidas ou aquelas que faziam uma opção consciente por utilizar o SUS (ainda que podendo pagar por outra alternativa). E, de fato, também não afeta as mulheres cuja casa não se situa perto de uma das maternidades no Rio de Janeiro onde equipes particulares de parto humanizado topam atender (Perinatal de Laranjeiras, Santa Lúcia e Perinatal da Barra - esta última mais raramente), caso a transferência se dê em situação de emergência - já que ninguém vai transferir em caso de emergência alguém da Ilha do Governador ou da Baixada Fluminense ou da Vila da Penha (para citar alguns exemplos) para quaisquer destes lugares.

Ainda sobre emergências, naquelas mais graves que exigem atendimento imediato, não necessariamente haveria tempo de acionar a equipe completa (obstetras, anestesista, pediatra, que teriam que se direcionar para a maternidade de escolha muito rapidamente) ou mesmo de se deslocar para uma destas maternidades com a mulher e/ou o bebê, sendo provavelmente mais seguro acionar o SAMU e/ou se dirigir para a maternidade mais próxima da casa com plantão 24 horas de todas essas especialidades (ainda que isto implique em bullying e desrespeito ao plano de parto). Lembrando, inclusive, que a recomendação formal é chamar O SAMU em caso de emergência, o que implica (ao menos no Rio de Janeiro) em ser levada para o hospital mais próximo que atenda às necessidades da intercorrência em curso (e não para sua maternidade de escolha).

Então, refraseando, a limitação ao backup particular afeta um contingente específico de mulheres que podem dispor de um atendimento deste tipo e ainda aquelas que tenham razões para transferência que permitam essa logística.

Perdem também os profissionais médicos que gostariam de prestar esta assistência de qualidade para mulheres sob seus cuidados ou de oferecer esse tipo de parceria para equipes de parteiras em quem confiam e com quem trabalham habitualmente. Estão limitados de forma arbitrária pelo seu conselho no direito de exercer sua profissão como bem lhes convier, arcando com as responsabilidades decorrentes, claro.

Perdem também as equipes de parteiras, mas eu acredito que essa “perda” se dá muito mais pela determinação de que toda e qualquer transferência deve ser notificada ao CRM do que pela ausência do backup em si. E, claro, com essa determinação aumenta o risco profissional para as parteiras, ou seja, o risco de haver denúncia, investigação, processo, provavelmente aumenta. Mas, de verdade? Ele sempre existiu. Nós nunca soubemos a magnitude deste risco e, mesmo agora, não sabemos o quanto ele aumentou. Mas provavelmente aumentou e seguirá maior mesmo quando (e se) essas resoluções caírem (quando o hábito de “notificar” pegar, dificilmente ele cairá de moda...). Ou seja, para as equipes de parto domiciliar, o cenário não está tão bonito. Mas eu não acredito que alguém que atenda partos domiciliares vivia, antes das resoluções entrarem em vigor, a ilusão de que estava imune a essas dores de cabeça, por melhor que seja a assistência prestada. Com ou sem backup, aliás. Mas cada profissional tem todo o direito de rever seu trabalho por esta razão (ou qualquer outra).

Não é verdade que as enfermeiras obstetras não podem mais atender parto domiciliar no Rio de Janeiro, nem mesmo é verdade que o parto domiciliar agora ficou menos seguro. O que garante a segurança do parto domiciliar é pré-natal de qualidade, triagem adequada de risco, vigilância intensiva em trabalho de parto, cuidado não invasivo, treinamento e recursos materiais para atender emergências e um plano de transferência bem discutido e bem estabelecido - que tenha uma distância máxima da casa da mulher de 30 minutos, em regime de plantão 24 horas de obstetra, pediatra e anestesista, porta aberta, equipe treinada para atendimento de emergência, centro cirúrgico etc. Que este médico seja o “seu médico” é um plus relevante, mas não se pode dizer que ele seja fundamental. Que há risco de bullying ninguém em sã consciência negaria, sendo que o “seu médico” talvez blinde esse bullying por sofrê-lo ele próprio (e o risco de ser denunciado ao conselho também não foi inventado agora, com estas resoluções - ele SEMPRE existiu). Mas este são os ônus do parto domiciliar, que devem ser discutidos com a equipe ainda mais extensivamente que os bônus.

E sem backup-particular-humanizado-pré-acordado está contra-indicado o parto domiciliar? No meu entendimento, de forma alguma. Contra-indicar parto domiciliar por esta razão significa limitar as possibilidades de escolha da mulher caso ela compreenda os riscos inerentes ao parto e esteja de acordo com o plano de transferência estabelecido (que atenda aos critérios de segurança necessários, ainda que não consiga contemplar o cenário ideal de “humanização” em todas as circunstâncias). E, mais importante ainda, significa impor um critério de elegibilidade baseado em um “ponto de corte” de classe, financeiro, extremamente injusto, elitista e excludente. Antes das resoluções, quem não podia pagar por equipe particular de backup não podia ter parto domiciliar? Quem não tinha plano de saúde? Quem usava o SUS? Não na minha realidade, não na equipe que integro. Então, nesse sentido, não considero um critério de exclusão legítimo. Mulheres sem equipe particular de backup podem e continuarão podendo ter parto domiciliar, utilizando o SUS ou o plantão como backup em caso de emergência, desde que equipe e família estejam de acordo com isso e saibam das implicações dessa alternativa. Como sempre aconteceu, aliás.

Enquanto isso, vamos batalhar por esquemas de transferência dignos para todas as mulheres. Para dar mais visibilidade à segurança do parto domiciliar, para ampliar o acesso a ele, para “humanizar” equipes hospitalares para atender quem quer que entre pelas portas das maternidades - mulheres em trabalho de parto ou transferidas de parto domiciliar, por exemplo, merecem igual respeito e qualidade de atendimento. No SUS e na Saúde Suplementar. E nas ambulâncias e onde quer que seja. Direito à saúde é um direito universal garantido pela constituição e se estende, obviamente, às mulheres em situação de emergência após parto domiciliar. As que podem pagar e as que não podem. As que moram perto da Perinatal e as que moram longe. As que acreditam e usam ou dependem do SUS. Todas. E uma dessas batalhas é por derrubar a resolução do CREMERJ sobre médicos em parto domiciliar, mas ela não é a única e provavelmente nem a mais inclusiva e universalizante.

Sigamos!

Crédito da foto: Gisela Giannerini, Entretantos Fotografia, parto da Ludmila Valente (que tinha um plano de backup mas não tinha um médico particular de backup <3)

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